Saiba mais sobre enxaqueca X Bruxismo, entrevista com a Dr.ᵃ Daniela Godoi Gonçalves.
- Telix

- 6 de out.
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Atualizado: 9 de out.
Marina: Bom dia. Hoje você vai entender o que a odontologia tem a ver com o tratamento de enxaqueca. Para isso, vamos conversar com a professora Daniela Godoi Gonçalves. Ela é a cirurgiã-dentista que palestrou no congresso internacional de cefaleia deste ano sobre o tema enxaqueca e DTM. Professora, o que é DTM e o que ela tem a ver com ranger os dentes e bruxismo?
Daniela Godoi: Bom dia. Então, Marina, e todos que estiverem nos acompanhando, esse é um tema interessante, né, Marina? Porque a gente precisa, antes de tudo, separar as questões. A DTM é uma disfunção temporomandibular, um nome guarda-chuva, como a gente diz, porque agrupa diversas condições que afetam as estruturas da face, os músculos que promovem a mastigação e as articulações temporomandibulares, que ficam à frente do ouvido e são chamadas de ATM. Ela pode envolver vários problemas. Não existe uma única definição. Se eu tiver que dar uma definição, é o conjunto de condições que afetam o sistema músculo-esquelético da região orofacial.
Ela é afetada por diversas coisas. É uma condição com etiologia multifatorial: vários fatores juntos se agregam para promover o surgimento dessas alterações, que podem ser estruturais ou apenas funcionais. O que isso quer dizer? Se você fizer um exame de ressonância magnética ou até um exame físico, pode não encontrar uma lesão específica, mas a pessoa tem dificuldades funcionais e dor também. Nem sempre encontramos uma alteração estrutural que possa ser um marcador biológico específico para DTM.
O bruxismo, que é o ato de apertar ou ranger os dentes, hoje em dia tem uma definição mais ampla, porque não é só isso. Também envolve estados de tensão que fazemos com os músculos, às vezes até sem contato entre os dentes. Os dentes podem estar sem toque, mas existe um estado de tensão e pressão muscular. Esse estado, em inglês, chamamos de bracing. Em português não há uma boa tradução, mas é esse estado de tensão que independe do toque dos dentes.
Tudo isso é bruxismo, que pode acontecer durante o sono, enquanto a pessoa está dormindo, ou durante a vigília, quando está acordada. Eles têm abordagens diferentes. O bruxismo da vigília é tratado com educação e mudança de comportamento. Mas tanto o do sono quanto o da vigília são atividades que fazemos com as estruturas e que podem gerar uma sobrecarga, levando a consequências nos dentes como desgastes e fraturas e também nos tecidos moles, como músculos, cápsula articular, disco articular e estruturas ósseas das articulações.
Assim, o bruxismo é um fator de risco para DTM. Ele pode estar envolvido, mas não necessariamente está. Existem pessoas que têm bruxismo e não têm DTM, e pessoas que têm DTM e não têm bruxismo. É um erro pensar: “Ah, então todo mundo que tem DTM tem bruxismo, precisa colocar placa oclusal e fazer uma abordagem para bruxismo”. Não. A gente precisa saber se essa pessoa realmente tem bruxismo.
Marina: Entendi. Então bruxismo e DTM são coisas separadas, e o ranger de dentes também é. Cada um é uma coisa.
Daniela: O ranger de dentes é um tipo de bruxismo, né? É uma das coisas que a gente faz e que a gente chama de bruxismo. Então, como eu falei, bruxismo pode ser ranger, pode ser apertar os dentes ou nem tocar os dentes, mas ficar fazendo uma força, uma pressão nos músculos.
Marina: Professora, no caso, se uma pessoa tem enxaqueca, como ela sabe se tem uma DTM também? O que ela tem que investigar no próprio corpo ou nas próprias ações para perceber se tem esse problema da DTM?
Daniela: Isso é uma coisa importante da pessoa saber, porque existem estudos, no meu grupo e em outros grupos do Brasil e de fora, que já mostraram que, entre as comorbidades da enxaqueca ou seja, as condições que aparecem associadas à migrânea a disfunção temporomandibular é uma das mais relevantes. É muito comum encontrarmos pessoas que têm as duas condições associadas. Eu diria que em torno de 50% das pessoas com enxaqueca apresentam sinais e sintomas de DTM. E vice-versa: entre 50% e 60% das pessoas com DTM apresentam sinais e sintomas de migrânea.
Essa relação é muito importante e precisa ser identificada, porque já demonstramos que, quando as duas estão presentes, uma interfere na outra. Uma faz com que a outra se torne mais intensa, de mais difícil controle e mais persistente. Por isso, a abordagem simultânea é muito importante.
Como identificar a DTM? Isso vale para quem tem enxaqueca e para quem não tem. Vamos suspeitar da presença de DTM quando a pessoa relata dor ou cansaço porque, às vezes, não é bem uma dor, mas um cansaço, uma sensação de fadiga na face. É como se a pessoa tivesse dificuldade para mastigar. Não é porque ela não consiga ou porque a dor seja insuportável, mas porque há uma sensação real de fadiga.
Outra coisa perceptível é a redução de movimento. A pessoa tenta abrir a boca e não consegue abrir totalmente, porque isso gera mais cansaço, mais dor ou até um impedimento mecânico. Também pode haver dor nas articulações temporomandibulares, nas ATMs, que ficam à frente do ouvido. A dor pode ser mais pontual e localizada.
Ao tentar abrir a boca, às vezes há impedimentos porque o disco dessa articulação pode sair do lugar e gerar dificuldade no movimento. Podem surgir sons articulares, embora o barulho na articulação não signifique uma patologia específica nem uma necessidade imediata de intervenção. Muitas pessoas têm sons articulares estalidos, como se fossem estalos de dedos, ou um raspado parecido com areia dentro da articulação. Isso pode ser apenas uma alteração morfológica ou realmente um problema a ser tratado, mas não partimos do princípio de que só por ter um som articular já se precisa de intervenção.
Esses são os principais sinais e sintomas da disfunção temporomandibular, que podem surgir tanto em pessoas com migrânea quanto em quem não tem. O importante é entender que, quando a pessoa tem migrânea, ela tende a apresentar uma sensibilidade generalizada, não só na cabeça, mas principalmente na face. Essa pessoa é, geralmente, mais sensível à dor.
Durante as crises de enxaqueca, a dor pode começar na cabeça e se espalhar, atingindo o rosto e a face. Então, para saber se a dor é apenas resultado da enxaqueca ou se há uma DTM associada, é preciso observar o paciente fora das crises de enxaqueca.
O cirurgião-dentista está preparado para identificar a DTM. Ele realiza exames clínicos, avalia a função e orienta o paciente. O próprio indivíduo também pode observar se tem os sinais que mencionei, mesmo fora da crise: dificuldade para mastigar, dor localizada ao palpar a região ou uma dor que se espalha. Se a dor aparece mediante função ou palpação, essas são maneiras de identificar a presença da DTM.
Marina: Bem importante isso que a doutora falou, e ela vai explicar pra gente o porquê. Mas então, vocês que estão nos assistindo, que têm enxaqueca, fadiga na face, cansaço ao mastigar, mesmo agora que você não está com dor, não consegue abrir direito a boca, sente dor na articulação e dor quando apalpa, presta atenção então no resto dessa entrevista, que vai ser importante pra você e pode te ajudar na enxaqueca. Então é... vamos supor que a pessoa está aqui assistindo à live e percebeu que está com esses sintomas de DTM. Como é que o profissional de saúde, né, primeiro... eu ia perguntar, né, se ela tiver... então, se ela descobrir isso, que tem essa DTM além da enxaqueca, que tipo de profissional de saúde essa pessoa deve procurar?
Daniela: Se ela tiver enxaqueca ou DTM, você disse?
Marina: Agora, né? Assistindo à live, ela perceber que tem DTM também.
Daniela: O ideal é procurar um dentista. Existe aqui no Brasil, regulamentado, e o Brasil é bastante pioneiro nisso. Assim, é um dos países pra você ter uma ideia isso aconteceu nos Estados Unidos, o que eu vou falar agora, há um ou dois anos, e a gente já tem essa especialidade de disfunção temporomandibular e dor orofacial aqui no Brasil há dez anos, né? Então, mais de dez anos. Inclusive, nós temos a Sociedade Brasileira de Dor Facial, que é a SBDOF, que congrega esses profissionais e faz um trabalho educativo. É um site interessante também pra se visitar. Então, o ideal é que a gente procure um profissional capacitado, se possível um especialista. Nem todas as cidades têm especialistas ainda, inclusive é uma especialidade em ascensão no Brasil, mas o ideal é que seja uma pessoa capacitada. Às vezes, o profissional até de outra especialidade dentro da odontologia, mas se capacitou em DTM e sabe avaliar. Então seria uma situação ideal.
Marina: Então não seria qualquer dentista, tem que ser um dentista que entenda de dor orofacial, então.
Daniela: É, exatamente. Porque sabe, Marina, com a evolução da especialidade da odontologia, a gente tem aí muitas vertentes que acompanham essa especialidade há algum tempo, e algumas coisas que já foram muito polêmicas e hoje a gente já sabe que não são diretamente relacionadas com a DTM. Por exemplo, a oclusão dentária, a maneira como as pessoas tocam seus dentes isso já foi uma coisa assim: “Ah, se você tem DTM, precisa tratar outros”. Não é. A gente sabe já que não é. Então, que seja alguém realmente que já está atualizado dentro dessas perspectivas e sabe fazer uma boa avaliação dentro dos parâmetros científicos mais atuais da disfunção temporomandibular.
Marina: Para um leigo encontrar essa pessoa, seria entrar nesse site da SBDOF?
Daniela: É uma boa fonte, porque ali nós temos um diretório dos profissionais que são vinculados à sociedade e que estão espalhados pelo Brasil todo. É uma maneira assim.
Marina: Legal. E aí, professora, como é que esse profissional de saúde seja o neurologista ou esse profissional cirurgião-dentista especializado em dor identifica se a dor que o paciente sente na cabeça é causada pela DTM, pela enxaqueca ou por ambos?
Daniela: É super importante fazer esses testes funcionais e palpação. Então, como eu falei, a DTM é uma dor musculoesquelética. O que quer dizer isso? Que são os músculos, as articulações e as estruturas ligamentos, cápsulas envolvidas com essas estruturas que estão afetadas. Então, necessariamente, você tem que ser capaz de reproduzir a queixa do paciente. Mesmo que seja um neurologista, que não é um especialista em DTM, obviamente, mas quando você faz os estímulos, você está fora de uma crise de enxaqueca e faz estímulo: a paciente vai mastigar, vai abrir a boca, vai apertar os dentes, fazendo testes funcionais. Isso tudo instiga aquela dor, traz um desconforto, lembra a pessoa daquela queixa. E isso é um sintoma, é algo que realmente faz a gente pensar na DTM, na presença de DTM.
Marina: Entendi. E pode acontecer dessa estimulação, durante a consulta, ser um gatilho para uma crise de enxaqueca?
Daniela: Até pode. É difícil que seja só essa estimulação, mas sim, existe. O que a gente já detectou nas pesquisas é que, assim, tem muitos pacientes que são acompanhados durante esses períodos de pesquisa, e a gente observa esse relato. A pessoa diz: “Eu acordei num dia com uns sintomas de dor de DTM. Eu tava com dificuldade até de tomar o café da manhã.” Porque a DTM é flutuante: você tem DTM, mas não precisa necessariamente ter dor e desconforto todos os dias. Tem dias que você está muito bem.
Então, o paciente que tem enxaqueca fala: “Às vezes a minha enxaqueca começa porque eu sinto essa dor no rosto. Às vezes essa dor se espalha pro pescoço.” E, como eu falei, o paciente que tem migrânea tem um cérebro mais sensível a estímulos, inclusive os de dor, os nossos receptivos.
Quando você tem um estímulo acontecendo nessa região, e um detalhe mais técnico, mas que é legal as pessoas entenderem: quando você está sentindo dor aqui, o processamento da dor está acontecendo no seu cérebro, no sistema nervoso central. E é num lugar lá no cérebro que também é muito importante para a crise de enxaqueca onde começa a crise, onde a crise se desenvolve.
Então você acaba sobrepondo dores, e isso faz com que a pessoa esteja mais vulnerável a ter uma crise de enxaqueca. As coisas vão se somando e acabam desenvolvendo. Cada paciente de enxaqueca tem o seu gatilho específico. Tem pessoas que vão ter enxaqueca se comerem alguns alimentos, se beberem bebidas alcoólicas, se alterarem o padrão de sono, se passarem por situações de estresse. As mulheres, durante o ciclo hormonal, né, o menstrual, também.
Então isso vai se alterando. Mas a presença de dor, e uma dor que aconteça nesse sistema, é um fator muito importante como desencadeante da crise de enxaqueca.
Marina: Entendi. Então eu, como paciente, me sinto um pouco frustrada e impaciente quando preciso ir para vários profissionais de saúde diferentes para resolver o problema. E também fico triste quando vou no profissional de saúde para resolver o problema e, de repente, ele faz um exame que me desencadeia a dor. Às vezes eu fico com uma impressão ruim do profissional por passar por isso.
Mas é uma etapa importante para ajudar no diagnóstico, mesmo sendo ruim. Como paciente, é difícil. O cenário ideal, assim, para mim, seria se eu fosse só no médico e ele resolvesse tudo. Você acha que, ou só no dentista, é possível no futuro a existência de profissionais de dor de cabeça que dominem tanto a área de neurologia quanto de DTM e de fisioterapia, para que possam tratar de maneira integral o paciente? Para que ele não tenha que procurar um neurologista e depois procurar um especialista na área de odontologia da dor. Você vê esse cenário como possível?
Daniela: Não, não vejo. Eu acho que cada profissional tem a sua abordagem específica. O fisioterapeuta vai ter uma visão e uma abordagem. O dentista vai ter uma visão, uma abordagem. O médico. O psicólogo, que muitas vezes precisa entrar nessa história também.
Embora não seja a situação mais fácil e mais confortável para o paciente, é importante. Agora, isso não quer dizer que nós, cada um de nós, dentro dessas especialidades, possamos ficar à parte da história. O que eu quero dizer com isso: como dentista, é muito importante que eu saiba identificar uma cefaleia não só a migrânea mas eu tenho que saber ouvir a história do meu paciente, fazer um exame clínico nele e entender queixas que ele está me dando ali, o que é compatível com a DTM e o que não é.
Assim como o neurologista também precisa ter a suspeita disso. E as abordagens para tratamento, cada um vai ter a expertise para conduzir dentro da sua especialidade. Por exemplo, dentro da área de cefaleias, quando a gente fala em dor de cabeça, dor de cabeça pode ser a expressão de muitas condições, de muitas doenças, inclusive.
Tanto que a Classificação Internacional de Cefaleias separa três grandes grupos: as dores no segmento cefálico, as chamadas cefaleias primárias essas são a doença em si, não são causadas por outra doença. Nesse grupo, a gente tem a enxaqueca, a cefaleia de tensão e a cefaleia de origem autonômica.
Depois nós temos um grupo muito grande, que é o das cefaleias secundárias. Daí você tem várias subdivisões. Podem ser provocadas por uma infinidade de coisas, inclusive DTM, que provoca um tipo de dor na cabeça que não é enxaqueca, que não é cefaleia de tensão, mas é uma dor provocada pela DTM.
Nas cefaleias secundárias, o tratamento dessas dores de cabeça é tratar a causa. Então, se a causa é uma doença da área otorrinolaringológica, isso tem que ser tratado e a cefaleia vai melhorar. Se for DTM, isso tem que ser tratado e a cefaleia vai melhorar. E assim por diante.
E a gente tem doenças que podem causar dor de cabeça e que, inclusive, podem pôr em risco a vida da pessoa, como tumores intracranianos. É muito importante entender que nem toda dor de cabeça é uma doença que põe em risco a vida da pessoa, mas põe em risco a qualidade de vida. O diagnóstico precisa ser feito por um profissional especializado.
Mesmo o neurologista, quando detecta uma dor de cabeça que não é uma cefaleia primária e que pode vir de problema otorrinolaringológico, oftalmológico, uso ou retirada de determinadas substâncias ou doenças metabólicas, tem que encaminhar para outro profissional médico, muitas vezes, que possa cuidar dessa doença de base que está causando a dor de cabeça.
E, só para encerrar, o terceiro grande tipo de dores no segmento cefálico são as neuralgias. Algumas delas podem ser tratadas pelo dentista, mas muitas têm que ser tratadas pelo neurologista.
Marina: Entendi, doutora. Então, ó pessoal, vocês que têm enxaqueca aí têm que ter paciência. Tem que saber que, eventualmente, não vai ser só o médico. Ainda mais se você assistiu essa live e percebeu que tem sintomas de DTM.
Tem que ter paciência e disciplina para ir ao médico, ao odontólogo, ao dentista. A professora até citou outros profissionais, como fisioterapeutas. É preciso fazer esse caminho com paciência e persistência, porque vale a pena e é o caminho para melhorar.
Tentar pegar um atalho não vai resolver o problema e vai fazer com que você continue por anos e anos sentindo dor. Se você ainda não foi ao dentista e tem DTM associada à enxaqueca, visite agora, porque pode ser a solução.
Eventualmente, a sua dor de cabeça pode ser secundária ou estar associada à enxaqueca, mas está contribuindo, e quando for tratada vai ajudar bastante.
Legal, doutora, obrigada por esse esclarecimento. Você é cirurgiã-dentista e fez mestrado em neurologia. Você sentiu alguma dificuldade nessa transição? No relacionamento entre neurologistas e dentistas tratando o mesmo paciente com enxaqueca? Daniela: Então, essa área de disfunção temporomandibular e dor orofacial, porque nós estamos falando aqui sobre DTM, né, mas é importante lembrar que DTM é uma das condições dentro desse grande grupo que chamamos de dor orofacial, que é a especialidade dessa área.
A gente trata de muitas dores no segmento cefálico. São dores intraorais, relacionadas a dentes, periodonto, tecidos moles, e dores extraorais também, como alguns tipos de neuropatias e neuralgias. Existem muitos tipos de dores.
O profissional especialista nessa área, que é dentista, precisa estudar bastante sobre neurologia. Não neurologia como especialidade, mas os fenômenos neurológicos, como as dores são interpretadas, como entendemos que estamos com dor e como esses processos acontecem no cérebro.
É uma especialidade dentro da odontologia que se diferencia por essa necessidade de conhecimento específico dentro da área da neurologia. Não é simples mesmo para nós, dentistas, iniciar nesse caminho. Eu tive muita sorte, porque tive a oportunidade de fazer mestrado em um programa de neurologia dentro de um hospital enorme, que é o HC da USP de Ribeirão Preto.
Lá, convivi com profissionais altamente capacitados, que me ensinaram muito, e também com pacientes com casos complexos, que são muito comuns nessa área. A vida do especialista em DTM é lidar com casos complexos, então é preciso dedicação ao estudo e aprofundamento nesse campo.
Dificuldades sempre vão existir no relacionamento entre profissionais, mesmo dentro da odontologia ou da medicina. Existem dificuldades nas relações humanas. O importante é que tenhamos conhecimento da nossa área de atuação e também dos limites éticos do que podemos e devemos fazer como dentistas, médicos ou fisioterapeutas, para citar alguns dos profissionais envolvidos nesses tratamentos.
Isso tem melhorado bastante. Cada vez mais, no Brasil e no exterior, vemos congressos de odontologia e neurologia buscando essas interfaces, com palestras de dentistas em congressos de neurologia e vice-versa. Há um esforço para construir esse caminho de diálogo e interação.
Sabemos que, pelo Brasil, já existem vários grupos atuando de forma multidisciplinar, tanto em universidades quanto em atendimentos privados. Isso é muito interessante e importante. É um aprendizado em andamento.
Eu acredito que, com boa vontade e espírito ético de todas as partes, esse relacionamento entre profissionais não só é possível, como também é desejável. Marina: E você vê isso funcionando na prática? Nesses centros multidisciplinares funciona bem? O dentista trabalha bem com o neurologista e isso acaba contribuindo para a melhoria do paciente? Daniela: Com certeza, são abordagens diferentes. Nós, como dentistas, somos muito bem treinados para fazer intervenções locais, periféricas, e isso é muito legal porque agrega muito à prática do neurologista.
Por outro lado, o neurologista tem essa visão do diagnóstico neurológico, que também é muito importante, porque existem comorbidades. Você pode identificar uma migrânia, por exemplo, mas é preciso saber se é só isso, se existe uma comorbidade ou se, na verdade, é outra doença que está se manifestando de forma semelhante e confundindo o diagnóstico.
Essa interação é muito boa, ajuda todos os profissionais envolvidos e, sem dúvida, quem mais se beneficia com isso é o paciente. Marina: Legal, que legal. E agora, entrando nas opções de tratamento para DTM, como é que o dentista trata a DTM? Quais são as opções? Daniela: Então, da mesma maneira que a DTM tem uma etiologia multifatorial, o tratamento também é múltiplo. Primeiro, além de identificar se a pessoa tem ou não DTM, precisamos saber se essa DTM é uma condição aguda, que se instalou recentemente e é manejável, ou se já apresenta uma característica de dor centralizada, de sensibilização central.
Isso é o que chamamos hoje de dor de mecanismo nociplástico. O que isso significa? Significa que muito do mecanismo que sustenta essa dor está no sistema nervoso central, mais do que no sistema nervoso periférico ou nas estruturas periféricas.
Nesses pacientes, não teremos sucesso tentando apenas controlar o bruxismo. Por exemplo, se ele também tiver bruxismo e tentarmos apenas colocar uma placa, isso não será suficiente. Muitas pessoas que não são especialistas em DTM, e até pacientes, pensam que todo tratamento envolve placa oclusal, mas isso não é verdade.
Muitas vezes a pessoa coloca uma placa oclusal e acha que está tratada, mas não está. Ela precisaria de uma abordagem mais ampla, com foco tanto central quanto periférico. Claro que a placa oclusal é uma opção, mas trabalhamos muito também com educação, controle de hábitos e instruções de autocuidado, porque o paciente precisa participar ativamente do tratamento.
Isso envolve intervenções em casa, como massagens, compressas e exercícios para melhorar a mobilidade e a função da região. Também existe o uso de medicamentos, que podem ser administrados por um tempo curto para controlar os sintomas, especialmente nos casos em que há envolvimento do sistema nervoso central.
Nesses casos, é preciso modular a forma como o cérebro está lidando com a dor. Existem diferentes tipos de medicações e também intervenções locais, diretamente nos músculos e articulações, como lavagem articular (artrocentese) e viscosuplementação, que hidrata e lubrifica a articulação.
Há, portanto, diversas possibilidades terapêuticas, que vão depender do tipo de DTM que a pessoa apresenta. Marina: Entendi. Então vamos ver se eu entendi. Vou falar aqui, pessoal: vocês que têm DTM e eventualmente até estão usando a placa oclusal, que já é um passo importante, se ainda não melhoraram, é necessário fazer mais coisas.
Existem outras opções, como controle de hábitos, massagens, compressas, exercícios e medicação. Então, se não funcionou, tem que voltar ao dentista e explicar, porque ele tem outras cartas na mão, outras opções para ajudar a melhorar. Importante saber disso. Ah, é isso mesmo, espetáculo. Eu acho que é isso, doutora? Daniela: É isso certinho. Marina: É, então… a DTM tem cura ou apenas remissão e controle? Daniela: Tem controle, tem controle sim. Porque, de novo, cura é quando, por exemplo, você sofre a invasão de um microrganismo, um vírus ou uma bactéria, e então você ou medica ou o próprio organismo combate esse microrganismo e resolve aquele processo.
As condições funcionais, como a DTM, a própria enxaqueca, a fibromialgia e várias outras, como a síndrome do intestino irritável ou alterações gastrointestinais, são controláveis. Em muitos casos, conseguimos um controle tão bom que a pessoa diz: “acabou o problema, nunca mais tive”. Mas nada impede que esse problema volte a surgir.
No caso da enxaqueca, é diferente. A pessoa nasce com enxaqueca e carrega essa condição por toda a vida. Isso não significa que vai sentir dor de cabeça o tempo inteiro. Com bom acompanhamento, controle e uso correto de medicações bem indicadas, sem automedicação, é possível ter um excelente controle.
Com a DTM acontece algo parecido. O paciente chega com limitações e sintomas, faz as intervenções, melhora e recebe alta. Não precisa permanecer para sempre em tratamento. No entanto, dependendo dos fatores que aparecerem ao longo da vida, a DTM pode voltar a surgir.
O interessante do tratamento é educar o paciente para que ele entenda quais são os fatores que podem desencadear ou piorar a condição. Assim, ele aprende a lidar com esses fatores também.
Diferente da enxaqueca, que tem uma base genética mais forte e sobre a qual não temos controle direto, a DTM também pode ter um componente genético, mas a intervenção sobre fatores externos é muito mais efetiva. Por isso, é possível ter um excelente controle com uma boa abordagem. Marina: É, professora, a gente está falando de remissão e controle. Pelo que eu tinha entendido, controle é quando a pessoa está fazendo tratamento e os sintomas diminuem, mas não necessariamente cessam. Já a remissão seria quando a pessoa deixa de ter os sintomas, continua fazendo o tratamento, mas vive a vida dela como se não tivesse a doença.
Essa é a definição mesmo? Daniela: Essa é a definição. No caso da DTM, você pode inclusive ter remissão mesmo não estando mais em tratamento. Você pode ter feito as intervenções terapêuticas, alcançado um bom controle, encerrar o tratamento e seguir sem sintomas.
Você não vai ficar tomando remédio para sempre. Depois de tirar a intervenção, é possível continuar bem, sem apresentar sintomas. Isso é bem possível. Marina: Sem fazer tratamento e sem ter o sintoma, é como se você estivesse curado. Não se considera cura por causa da natureza da doença, mas na vida real é… Daniela: Sim, você pode ter uma remissão e por um bom tempo, sim. Marina: Que legal. E assim, pela sua experiência, uma pessoa que trata enxaqueca e DTM ao mesmo tempo leva, em média, quanto tempo para conseguir controlar ou ter a remissão da enxaqueca e da DTM? Daniela: Isso é muito variável, Marina, porque, como eu falei para você, vai depender de muita coisa. A própria migrânia exige que o paciente tenha uma postura que ajude no tratamento. A enxaqueca tem fatores de gatilho para as crises e, muitas vezes, a pessoa sabe, por exemplo, que se comer chocolate vai ter enxaqueca, mas mesmo assim consome. Isso também influencia no resultado.
Com a evolução dos tratamentos para enxaqueca, principalmente com as novas medicações, temos visto um controle que nunca tínhamos observado antes. Pessoas realmente mudam de vida com o tratamento adequado. Claro que ainda precisamos de tempo, porque esses pacientes estão sendo acompanhados, mas já existe uma perspectiva real de mudança no manejo da enxaqueca, inclusive de sonhar com uma remissão completa.
O tempo para que isso aconteça varia muito. Por exemplo, se o paciente tem dez ou quinze anos de histórico de enxaqueca, começou a ter crises aos doze anos e hoje tem quarenta, ele já tem uma sensibilização central bastante estabelecida. Nesses casos, a intervenção costuma ser mais longa e trabalhosa.
Outros pacientes têm uma história mais recente e conseguem alcançar um controle mais rápido. Então, o tempo depende muito do histórico, da adesão ao tratamento e do cuidado com os gatilhos individuais. Marina: E, por exemplo, para alguém que tem uma história mais recente de enxaqueca associada à DTM, vamos supor um histórico de um ano ou um ano e meio, que é algo que a gente tem visto bastante aqui no site.
Essa pessoa pode ter expectativa de melhora tratando as duas coisas ao mesmo tempo? Em quanto tempo, mais ou menos? Daniela: Olha, eu vou te falar de uma pesquisa que nós mesmas fizemos aqui na Faculdade de Odontologia de Araraquara, na UNESP, em colaboração com neurologistas do Brasil e do exterior. Foi um estudo clínico controlado, duplo-cego, randomizado, o famoso RCT, que é o padrão ouro para avaliar a eficácia de um tratamento.
Nós acompanhamos e tratamos pacientes com uma medicação muito efetiva, que não é dessas mais modernas, como os Gepants ou os mAbs, mas sim o propranolol, uma medicação com evidência classe A para controle de crises de enxaqueca. Ele não é usado na hora da dor, e sim de forma profilática, ou seja, a pessoa toma todos os dias por um período para reduzir a frequência das crises.
A novidade do estudo foi tratar a DTM e a enxaqueca ao mesmo tempo desde o início. Nós tínhamos um grupo de mulheres que recebia os dois tratamentos simultaneamente, outro grupo que recebia tratamento para DTM e placebo para enxaqueca, um terceiro que recebia o inverso, e um quarto grupo que recebia placebo para as duas condições por um tempo.
A fase cegada durou três meses, em que as pacientes não sabiam se estavam recebendo placebo ou medicamento. Depois, por mais três meses, todas receberam tratamento efetivo para as duas condições, totalizando seis meses de acompanhamento.
Os resultados mostraram que, desde o primeiro mês, quem recebeu os dois tratamentos simultaneamente já apresentava melhora. A efetividade máxima apareceu por volta do quinto e sexto mês. Nós encerramos o acompanhamento em seis meses, mas a curva de melhora ainda continuava crescendo.
Então, de forma prática, entre três e seis meses já é possível observar uma melhora bastante significativa nos sintomas quando a enxaqueca e a DTM são tratadas juntas desde o início. Marina: Essas pessoas que têm enxaqueca recente estão em um cenário. Agora, o segundo cenário são aquelas que têm enxaqueca há 20 anos, 15 anos… Daniela: É, na verdade, Marina, esse nosso grupo tinha pessoas com enxaqueca há mais tempo, não eram só casos agudos. Então, esse resultado a gente também observa em quem tem quadros mais cronificados. Marina: Ah, entendi. Então, de três a seis meses é uma expectativa razoável para melhorar da enxaqueca, para quem tem enxaqueca. Legal.
E tem os refratários, professora? Aqueles que não melhoram mesmo com esses tratamentos? Daniela: Tem sim. Mas a gente vê que muitos dos casos refratários são de pessoas que têm comorbidades não controladas. Por exemplo, até no ano de 2020 ou 2021, foi publicado um estudo em uma revista científica muito importante, se eu não me engano na Nature, que trouxe uma diretriz da Sociedade Europeia de Cefaleia para identificação e tratamento da enxaqueca.
Entre os dez itens destacados, um deles é identificar e tratar as comorbidades. Isso porque pacientes com enxaqueca geralmente têm outras condições associadas, sejam condições dolorosas, como a própria DTM, ou comorbidades emocionais, como estados depressivos, ansiedade e outras alterações que podem estar presentes.
Muitas vezes o tratamento para enxaqueca está sendo feito corretamente, mas essas comorbidades não tratadas acabam mantendo a sensibilização e, consequentemente, a dor.
Então, quando estamos diante de um paciente com perfil refratário, a primeira pergunta que precisamos fazer como profissionais é: “Será que estou perdendo alguma coisa aqui? O que está faltando identificar e tratar?”.
Por isso é tão importante contar com mais de uma especialidade envolvida no caso. Quando há chance de comorbidades, o trabalho conjunto entre diferentes áreas aumenta muito as chances de sucesso no tratamento. Marina: Interessante, interessante. Então, por exemplo, um dentista que vai atender um paciente para tratar DTM, e a queixa dele é relacionada a DTM, mas durante a consulta o dentista descobre que a pessoa também tem dores de cabeça que parecem enxaqueca…Qual deve ser o procedimento desse dentista? Daniela: Então, se ele tiver certeza absoluta de que é enxaqueca, é importante saber reconhecer as características desse tipo de dor. Muitas vezes usamos a palavra “enxaqueca” de forma errada, chamando qualquer dor de cabeça assim, mas a doença migrânea tem sinais bem específicos.
Como identificar uma crise de enxaqueca? Primeiro, a pessoa nunca vai ter só dor de cabeça. Junto com ela, geralmente aparecem sintomas acompanhantes, como náusea, vômito, fotofobia e fonofobia, que são intolerância à luz e ao barulho, especialmente no momento da crise.
A dor costuma ser intensa, latejante, muitas vezes de início unilateral, podendo alternar de um lado para o outro e, depois que começa, se espalhar por toda a cabeça. Além disso, durante a crise, se a pessoa fizer qualquer atividade física rotineira, a dor tende a piorar. Esses são sinais bem típicos de uma crise de enxaqueca.
Às vezes, o paciente diz: “Eu só tenho essa crise de enxaqueca quando acordo com dor no rosto e não consigo mastigar”. Nesse caso, pode haver um componente importante de DTM, e ao tratar a DTM, a crise de enxaqueca pode melhorar.
O ideal é que, se você é dentista ou fisioterapeuta e identifica a presença dessas cefaleias, encaminhe o paciente a um neurologista capacitado na área de enxaqueca e cefaleias para acompanhamento simultâneo. Essa é a melhor conduta. Marina: É, doutora, eu vi no seu currículo que você fez muitos cursos interdisciplinares: agulhamento a seco, biofeedback, fisioterapia, estimulação cerebral não invasiva, acupuntura, hipnose, abordagem psicossocial.
É uma gama tão grande de estudos nessa área da dor. O que te motivou a estudar e se especializar justamente nesse campo? Daniela: Então, foi interessante essa trajetória, Marina. Eu comecei já formada como dentista, trabalhando em consultório, não fui direto para a vida acadêmica. Sempre gostei da área de DTM, mesmo antes de ela ser uma especialidade regulamentada no Brasil. Eu já fazia cursos e buscava aprender tudo que surgia na área, procurava me informar.
Depois, fui fazer um curso de especialização, quando tudo começou a se estruturar melhor no país, e comecei a atender muitos pacientes com DTM no meu consultório particular. Foi nesse momento que percebi que esses pacientes não vinham apenas com DTM, mas também com muitas outras comorbidades, principalmente cefaleias.
Isso despertou em mim o desejo de aprender mais sobre dores de cabeça. A partir daí, fui fazer mestrado, doutorado, e acabei mudando minha rota de carreira. Deixei a clínica particular e hoje me dedico exclusivamente à carreira acadêmica. Atendo pacientes dentro da universidade, mas não tenho mais consultório próprio.
Foi a observação desses pacientes, das complexidades e das comorbidades que surgiam junto com a DTM, que me fez buscar mais recursos. Eu queria aprender intervenções que realmente beneficiassem essas pessoas, fazer bons diagnósticos e oferecer melhores caminhos de tratamento.
E quando você começa a mergulhar nesse universo da dor, percebe que é uma área muito vasta, com infinitas possibilidades de estudo e atuação. É um campo que não tem fim. Marina: Ai, que legal! Que legal, professora, saber que os profissionais de saúde se importam. Imagina, a dor dos pacientes mudou a sua vida, a sua carreira profissional, despertou esse desejo de ajudar. Nossa, isso é muito, muito legal.
Porque a gente sempre precisa dos profissionais de saúde e, claro, é muito bom saber que o nosso sofrimento tem essa importância para você. Daniela: Com certeza, com certeza. É a razão de tudo. Eu falo isso bastante para os meus alunos também. A gente faz pesquisa, faz tudo, mas não pode perder o foco. O foco é ajudar as pessoas que têm dor.
Seja na pesquisa básica ou na pesquisa clínica, o objetivo é encontrar explicações e soluções que possam ser aplicadas na vida real e melhorar a vida dos pacientes. Marina: Que legal, que legal. Doutora, agora que você falou dessa parte de pesquisa, quando você está pesquisando artigos para fazer a fundamentação teórica de algum trabalho científico, você encontra alguma dificuldade em achar artigos realmente relevantes para a sua pesquisa? Daniela: Olha, eu vou falar de um lugar que, de novo, envolve algum privilégio, porque eu estou dentro de uma instituição acadêmica. E, estando aqui, a gente tem acessos que muitos profissionais, na rotina do dia a dia, não têm. Algumas publicações são pagas e isso, de fato, é um ponto frágil.
Por outro lado, isso tem melhorado bastante, porque hoje em dia a literatura científica oferece muitos artigos em acesso aberto, o que facilita muito. Existem recursos que podemos usar para conseguir acessar esses materiais de forma mais ampla.
Agora, uma coisa que eu considero muito delicada é a habilidade de encontrar bons artigos, artigos realmente relevantes. Isso vale para profissionais de saúde de qualquer área. Na academia, isso faz parte do nosso cotidiano, mas para quem está na prática clínica, isso pode ser mais difícil.
A gente ouve muito a frase “mas isso está publicado”, e isso não quer dizer que seja de qualidade ou que traga uma evidência científica válida. Hoje existem muitas revistas predatórias, que funcionam com foco comercial. As pessoas pagam para publicar, e muitos profissionais e pacientes acham que, porque existe um artigo sobre determinado assunto, já existe uma evidência confiável. E não é verdade.
Por isso, precisamos desenvolver esse letramento científico. O profissional que está no consultório precisa ter senso crítico e conhecimento científico suficientes para separar o que realmente tem embasamento do que não tem. Ele precisa ser capaz de pensar: “esse artigo está dizendo que eu posso fazer tal intervenção no meu paciente, mas isso faz sentido? Tem base científica válida?”.
As redes sociais ajudam e atrapalham ao mesmo tempo. Por um lado, temos pessoas muito sérias fazendo divulgação científica de qualidade. É importante dar ouvidos a essas vozes. Existem pessoas ensinando a ler artigos e a entender de verdade o que está sendo apresentado, ajudando a desenvolver um senso crítico que, para leigos, é mais difícil, mas que para profissionais de saúde é uma obrigação.
Essa capacidade crítica é essencial para oferecer tratamentos seguros e baseados em evidências de verdade. Marina: E assim, se você tivesse que apontar alguns fatores, dois ou três, que diferenciassem os artigos válidos dos inválidos, quais seriam esses fatores? Daniela: Então, aí a gente tem que pensar na qualidade do estudo. O artigo em si é apenas o relato do que foi feito, então o essencial é saber avaliar o estudo por trás dele.
Primeiro ponto: tamanho e seleção da amostra. É um estudo que tem uma amostra suficiente? Essa amostra foi selecionada de forma adequada? Estudos com amostras pequenas, mal selecionadas ou não representativas têm pouca força científica. Por exemplo, um estudo com 30 pessoas dividido em três grupos de tratamento não tem robustez para afirmar eficácia e segurança.
Segundo ponto: desenho metodológico. Para tratamentos, a maioria dos estudos de qualidade segue modelos de ensaios clínicos controlados, com cegamento de quem aplica e de quem recebe o tratamento, além de randomização. Isso significa que os participantes não escolhem o tratamento, são designados de forma aleatória para receber placebo ou intervenção. Bons controles e critérios bem definidos são fundamentais.
Terceiro ponto: nível de evidência. Existe uma sequência para um tratamento chegar até a prática clínica. Entre estudos epidemiológicos, ensaios clínicos e testes controlados, isso leva em média 14 a 15 anos. Quando você vê um artigo afirmando eficácia de um tratamento testado em pouquíssimas pessoas ou apenas com relatos de caso, é preciso desconfiar.
Durante a pandemia, por exemplo, vimos absurdos pseudo-científicos publicados, e mesmo com retratações posteriores, o estrago já estava feito. Por isso, é essencial ter muito cuidado com a qualidade metodológica, tamanho de amostra e nível de evidência antes de considerar qualquer estudo como válido. Marina: Legal. Então, em resumo, os dois principais fatores seriam o rigor da pesquisa, com esse cuidado de ser duplo-cego e randomizado, e o segundo fator importante seria o tamanho da amostra.
Ou seja, desconfiar de pesquisas com número muito pequeno de participantes. Daniela: É, e é exatamente isso que eu falei. Existe um modelo de artigo que chamamos de relato de caso. Ele tem sua importância, sim, mas não serve para embasar uma decisão clínica. Marina: Legal, espetáculo. E mesmo com esse acesso da universidade, ainda acontece de você ter que pagar para acessar o texto completo de algum artigo? Ou com esse acesso institucional você consegue tudo o que precisa? Daniela: É muito raro. Com o acesso da universidade, é bem difícil precisar pagar, porque a gente tem uma coisa maravilhosa no Brasil, oferecida pela CAPES, que é o Portal de Periódicos CAPES. Por meio dele, temos acesso a uma quantidade enorme de pesquisas.
Mas, mesmo assim, em algumas situações específicas, ainda acontece de precisarmos pagar para acessar um artigo. Isso é um processo complicado, e acho até importante as pessoas saberem como funciona.
A revista científica é, no fim das contas, uma empresa. Ela ganha dinheiro com isso. Os autores muitas vezes não recebem nada para publicar seus trabalhos. O cientista faz a pesquisa, no meu caso sou funcionária da universidade e recebo meu salário para isso, então faz parte da minha função. Mas, em determinadas revistas, ainda precisamos pagar para publicar.
Depois disso, o artigo é revisado por outros cientistas, que também não recebem nada para fazer essa revisão, e então a revista vende esse trabalho para outras pessoas lerem. Existe toda uma lógica editorial complexa por trás disso.
Hoje já existem alternativas, como os artigos em acesso aberto, mas normalmente, nesse caso, quem paga é o autor. Também temos os pré-prints, onde o autor pode disponibilizar o trabalho antes da revisão, mas aí é preciso cuidado, porque o artigo ainda não foi revisado por ninguém.
No processo tradicional, quando você envia um estudo para uma revista, ele passa por revisores que questionam, pedem ajustes, fazem sugestões e só depois disso ele é publicado. Isso garante uma avaliação crítica do conteúdo.
Com o tempo, novas soluções para ampliar o acesso estão surgindo, mas ainda existe esse modelo comercial bastante consolidado no meio científico.
Marina: E no caso, qual foi a plataforma paga que você teve que usar, por exemplo, para acessar um artigo? Qual foi ela?
Daniela: Geralmente, quando isso acontece, é direto para a revista. Você faz o acesso, aparece a mensagem de que o conteúdo está bloqueado e, para ler o artigo completo, só pagando diretamente para a revista. Marina: Aí, os artigos que não têm parceria com a Scopus, SciELO ou outras bases acabam ficando mais restritos, né?
E falando dos novos tratamentos para enxaqueca, que estão sendo divulgados nos congressos, como os gepants, os mAbs, botox e outros… O tratamento da enxaqueca em si é diferente em um paciente que tem DTM e em um que não tem?
Daniela: Não, o tratamento em si não é diferente. O que acontece é que o médico neurologista vai considerar vários fatores na hora de escolher o tipo de tratamento para a enxaqueca do paciente.
Ele avalia, por exemplo, o tempo de história da doença, o grau de cronificação e também as comorbidades. Se a pessoa tem, por exemplo, dificuldade para dormir, pode ser interessante indicar um medicamento que também ajude nesse aspecto. Se tem mais dor muscular, também pode haver escolhas que levem isso em conta.
Então, não é que o tratamento mude especificamente por causa da DTM, mas podem haver ajustes estratégicos que tornem o resultado mais rápido ou mais eficaz dependendo do quadro clínico completo do paciente. Marina: Perfeito. Falta só uma perguntinha ainda para eu fazer, mas acabou o tempo… posso avançar um pouquinho?
Legal! Que bom, professora. Tem algum hábito de autocuidado, de estilo de vida, que a senhora queira compartilhar com a gente e com quem está assistindo essa live, que ajude a prevenir ou melhorar mais rápido a DTM?
Daniela: Olha, tem sim. Uma coisa muito importante é identificar se você está mantendo hábitos parafuncionais ao longo do dia, ou seja, comportamentos que geram tensão na região orofacial sem perceber.
Por exemplo, observar se você passa o dia com a musculatura contraída, se alguém que dorme com você relata barulhos de ranger de dentes ou se você acorda com sensação de cansaço ou dor. Isso pode indicar bruxismo noturno e merece atenção.
Como hábito de autocuidado, o principal é manter uma postura relaxada da mandíbula. É muito comum ficarmos com os dentes em contato sem perceber. Mesmo que não estejam sendo apertados, isso gera tensão. O ideal é manter a mandíbula relaxada e os dentes separados quando não estiver falando ou comendo.
Outra dica simples e eficaz é fazer compressas e automassagens para aliviar a musculatura. Também é essencial evitar sobrecargas desnecessárias no sistema orofacial, como roer unhas, morder objetos, apoiar a cabeça nas mãos ou dormir pressionando o rosto.
E, por fim, cuidar também da região cervical. Muitas dores no rosto vêm do pescoço e acabam se misturando. Se houver tensão nessa área, procurar um fisioterapeuta pode ajudar bastante a melhorar esse quadro geral. Marina: Legal, eu nunca tinha parado para pensar nessa questão de relaxar a musculatura de propósito.
E uma coisa que me chamou atenção foi essa parte de colocar objetos na boca, porque tem muitas crianças que têm enxaqueca… Daniela: tem Marina: Que elas ficam às vezes colocando o lápis, seguram o lápis de um lado… Essa do lápis eu já tinha ouvido falar, mas essa de dormir com a mão eu nunca tinha pensado. Então são coisas bem legais que os pais podem observar nos filhos e, de repente, esses pequenos fatores podem estar contribuindo para a dor de cabeça ou até impedindo que a criança, ou o adulto, melhore da dor.
Bem legais essas dicas. Pessoal, prestem atenção: roer unha, morder os dentes, morder objetos como lápis, dormir com a mão apoiada no rosto, apoiar a cabeça na mão enquanto trabalha… tudo isso é muito comum hoje em dia e pode afetar tanto a DTM quanto, por consequência, a enxaqueca.
Sem dúvida. Obrigada, professora. Então é isso que a gente tinha para falar hoje. Queria agradecer novamente, oficialmente, pela sua presença aqui, por ter aceitado dar essa entrevista para a gente e dizer que toda a nossa equipe ficou muito feliz e emocionada com o seu empenho no desenvolvimento da ciência na área da dor orofacial. É muito legal ver isso.
Daniela: obrigada Marina: Queria agradecer vocês também que estão nos assistindo, seja ao vivo aqui no Instagram, no YouTube, no nosso aplicativo do Telix ou no Spotify. São vários canais diferentes onde essa live é publicada.
Quero avisar vocês que o nosso site telix.inf.br está com funcionalidades novas. Se você não acessa há algum tempo, entra lá: além das diversas informações sobre tratamentos para enxaqueca, agora estão ativos os filtros de indicação, contraindicação, ordenamento dos tratamentos por eficácia, risco e muito mais. Espero que vocês gostem.
Amanhã, quinta-feira, teremos uma entrevista com uma psicóloga que vai falar sobre algo que a professora Daniela citou aqui: depressão e ansiedade como comorbidades da enxaqueca.
E na sexta, vamos entrevistar a doutora Bruna, que vai falar sobre o fremanezumabe.
Então, continuem acompanhando a gente nos canais do Telix. Nossa meta é que você melhore rápido e consiga se livrar da sua dor. É isso então! Daniela: Perfeito, Marina. Obrigada! Parabéns pelo trabalho de educação que vocês fazem. Muito obrigada pelo convite. Marina: tchau tchau Daniela: tchau tchau



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